A Cláusula Arbitral por Referência e os Contratos Comerciais Conexos
Muitos poderão pensar que uma cláusula compromissória com o
condão de instituir a arbitragem só surtiria efeito quando inserida num contrato
específico, o que, a princípio, estaria absolutamente correto; todavia, esta
conclusão não necessariamente prosperará diante de determinadas situações,
em que as partes encontram-se vinculadas por diversas transações comerciais,
em especial as oriundas do comércio internacional, em que milhões de negócios
são entabulados, cumpridos rigorosamente e considerados firmes por ordens de
compras, faturas pró-formas, contratos-tipos, etc enviados por correio eletrônico,
fax e outros meios céleres de comunicação.
Estas transações são operadas em âmbito global e paulatinamente
vêm alterando o rigor das formas contratuais, de modo consuetudinário ou por
meio de iniciativas reguladoras do comércio eletrônico ou convenções
internacionais específicas, entre elas, a Convenção das Nações Unidas sobre
Contratos de Compra e Venda Internacional de Mercadorias firmada em Viena,
Há situações em que uma simples transação de compra e venda
internacional desencadeia diversos atos interligados e vinculantes, geralmente
com a interferência de terceiros, como as transações em bolsas de mercadorias,
serviços intermediários consubstanciados em contratos bancários (crédito
documentário), corretagem, agência, distribuição, seguros, etc. Apesar das
especificidades desses contratos, contudo, não há como negar que essas
transações são coligadas e interdependentes ao objetivo final: operacionalização
eficaz do contrato de compra e venda mercantil.
Com efeito, alguns destes tipos de contratos podem gerar
interessantes conseqüências quanto à abrangência da eleição da arbitragem
como forma de solução de controvérsias referente ao negócio. Neste sentido
indaga-se: pode a cláusula compromissória prevista em algum desses contratos
ser estendida ao contrato de compra e venda, em que não há tal previsão
Para responder esta questão avocamos interessante precedente
jurisprudencial originário do Tribunal Supremo Espanhol, que decidiu sobre a
possibilidade de reconhecimento e execução, na Espanha, de sentença arbitral
ditada na França, tendo como partes uma empresa francesa e outra espanhola,
contra a qual se solicitava a execução da sentença arbitral. Note-se, que um dos
argumentos da defesa para afastar e negar o pedido foi invocar o art. V, 1, “a” da
Convenção sobre Reconhecimento e Execução de Sentenças Arbitrais
Estrangeiras firmada em Nova Iorque em 1958 (CNI), em vigor na França e
Espanha. O mencionado art. V, 1, “a” da CNI, refere-se à ausência de cláusula
compromissória, como motivo denegatório do reconhecimento da sentença
arbitral estrangeira. A defesa alegava que dentre as cláusulas do contrato de
compra e venda não havia cláusula compromissória e, portanto, a sentença
arbitral ditada na França seria considerada nula ou inexistente.
Porém, o referido Tribunal, ao exarar sua decisão e efetuar a análise
dos fatos e do direito que instruíam a ação levou em consideração que as partes
ao entabularem o negócio o fizeram por meio de um contrato de corretagem,
com uma terceira empresa, no qual figuraram como compradora, a empresa
espanhola e, como vendedora, a empresa francesa. Nas regras referentes às
condições gerais de venda havia indicação que todas as controvérsias
decorrentes do contrato seriam solucionadas por arbitragem pela Câmara
Arbitral de Paris (entidade geralmente nomeada para solução de conflitos
referentes às transações de produtos originários do solo, como frutas, cereais,
etc e, muitas vezes, indicada em negócios entabulados por entidades
profissionais), que haveria de resolver em última instância e de acordo com o
seu Regulamento. As partes declararam conhecer e aceitar referida disposição.
A empresa francesa confirmou a venda para a empresa espanhola reportando-
se às condições do negócio exaradas no documento emitido pela empresa
corretora. A empresa espanhola encaminha correspondência por fax indicando
normas complementares que desejava incluir na confirmação de venda recebida
da empresa francesa, reiterando, ainda, que aceitava todas as demais
O Judiciário espanhol, ao analisar esses documentos e as demais
correspondências trocadas entre as partes, concluiu que se permitia “sem
nenhuma espécie de dúvida considerar satisfeito o requisito imposto pelo art. IV,
“b” da CNI [ter anexado o documento em que consta a cláusula
compromissória], pois ficou suficientemente assegurada a vontade das partes
em incorporar ao conteúdo do contrato, como uma cláusula a mais, a referente à
arbitragem, sem que, ao contrário, seja justificado alegar o desconhecimento da
existência de referida cláusula afirmada pela oponente, por mais que esta esteja
incluída em um contrato-tipo, que se remete em bloco ao particular celebrado
entre as partes, pois a recepção por esta da confirmação expedida pela
vendedora de n. B-93190, que não nega, unida à resposta que a compradora
encaminhou à vendedora, permite afirmar, sem circunlóquios, que teve
conhecimento de que a claúsula compromissória estava incluída no contrato
como parte dele e nada objetou sobre este particular; mas, ao contrário,
manifestou expressamente sua conformidade com as cláusulas que não alterou
Note-se que este tipo de extensão da eficácia da cláusula
compromissória recebe na doutrina a denominação de “cláusula arbitral por
referência”, comum nas relações comerciais entabuladas por meio de contratos-
tipos das associações profissionais especializadas, como as que atuam nas
áreas de algodão, café e cereais em geral.
O Tribunal Supremo Espanhol, em decorrência do acima relatado e
de outras questões de fato e de direito aduzidas no processo, reconheceu e
determinou a execução da sentença arbitral ditada na Câmara Arbitral de Paris,
que condenou a empresa espanhola por inadimplemento contratual.
Destarte, deste precedente exarado em cortes estrangeiras podemos
aferir que, se fosse transladado para o ambiente nacional, poderia ter idêntica
solução, pois ambas as legislações (espanhola e brasileira) dispensam efeito
vinculante à cláusula compromissória, bem como possuem a CNI como lei
incorporada ao ordenamento interno. E, ainda mais. Encontraria ressonância
também nos contratos e transações comerciais internas, em que os negócios
jurídicos devem ser analisados à luz da boa-fé e seus consectários, a confiança,
a lealdade contratual, etc; que, aliás, representam a pedra de toque de todas as
Advogada, mestre em Direito Internacional e doutora em Integração da América Latina pela Universidade de São Paulo –USP. Coordenadora e professora do curso de arbitragem do Programa de Educação Continuada da Fundação Getúlio Vargas – PEC/FGV em SP. Autora do livro “Árbitro, Princípios da Independência e da Imparcialidade” (São Paulo, LTr, 2001) 200.7
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