Untitled

Manhã de domingo. Escuto nosso modem para conexão discada tocar um jazz de má qualidade, enquanto mamãe se conecta com a internet. Estou no banheiro.
Descobri recentemente que mamãe tem digitado nomes de doenças mentais ainda não inventadas no buscador Yahoo: “adolescente com síndrome delirante”, “problema de imagina-ção hiperativa”, “estabilizadores comportamentais holísticos”.
Se o sujeito digita “adolescente com síndrome delirante” no Yahoo, a primeira página que ele lhe oferece tem a ver com a Síndrome de Cotard. A Síndrome de Cotard é uma ramificação do autismo em que as pessoas acham que estão mortas. O site oferece algumas citações seletas de vítimas da doença. Durante algum tempo, andei introduzindo essas frases nos hiatos de conversa na hora do jantar, ou quando a mamãe perguntava por meu dia na escola.
“Meu corpo foi substituído por uma concha.”“Meus órgãos internos são de pedra.”“Faz anos que eu morri.”Parei de dizer essas coisas. Quanto mais eu fingia ser um cadáver, menos franca ela se tornava em matéria de ques-tões de saúde mental.
Eu costumava escrever questionários para meus pais. Queria conhecê-los melhor. Perguntava coisas como: Que doenças hereditárias tenho probabilidade de herdar? Quanto dinheiro e imóveis tenho probabilidade de herdar? Se o seu filho fosse adotivo, com que idade você optaria por lhe falar sobre sua mãe verdadeira? Eles davam uma olhada nos questionários, mas nunca os Depois disso, passei a usar a análise disfarçada para des- Uma das coisas que descobri foi que, embora a barba do papai pareça cor de gengibre, a uma certa distância, chegan-do perto a gente vê que, na verdade, ela é uma mescla sutil de preto, louro e morango.
Também descobri que meus pais não transam há dois meses. Controlo sua intimidade por meio do regulador da intensidade da luz que eles têm no quarto. Sei quando anda-ram fazendo das suas porque, na manhã seguinte, o botão ainda continua regulado na metade.
Também descobri que meu pai sofre de surtos depressi- vos: encontrei um vidro vazio de antidepressivos tricíclicos na cesta de vime que fica embaixo da sua mesinha de cabe-ceira. Ainda tenho o vidro entre os meus Transformers ve-lhos. A depressão vem em surtos. Feito os assaltos do boxe. O papai fica no córner azul. Azul de melancolia.
Preciso de toda a minha intuição para descobrir quando começa um dos surtos depressivos do meu pai. Dois sinais são estes: um, do meu quarto no sótão eu o escuto esvaziar a lavadora de louça; dois, ele faz tanta pressão ao escrever que, sob uma certa luz, é possível ver dois ou três dias de bilhetes seus calcados na superfície da nossa toalha de mesa de plástico limpa-fácil: Meu pai não assiste à televisão. Só grava coisas.
Há maneiras de identificar quando um surto depressivo acabou: é quando papai faz um trocadilho complicado, ou uma imitação de um gay ou um oriental. São bons sinais.
Para planejar com a devida antecedência, é do meu in- teresse saber dos problemas mentais de meus pais desde a mais tenra idade.
Não me decidi pela palavra correta para designar a doen- ça da mamãe. Ela tem sorte, porque seus problemas de saú-de mental podem ser confundidos com traços de caráter: afabilidade, charme e calma.
Aprendi mais sobre a natureza humana assistindo de ma- nhã aos programas de entrevista da ITV nos dias de sema-na, do que ela em sua vida inteira. Eu lhe digo: “Você não está querendo abordar o vazio das suas experiências inter-pessoais”, mas ela não escuta.
Há alguns indícios de que o trabalho da mamãe é res- ponsável pelo estado da sua saúde mental. Ela trabalha no departamento de serviços jurídicos e democráticos do Con-selho Municipal. Tem muitos colegas. Uma das regras no escritório dela é que, quando a pessoa faz aniversário, é sua a responsabilidade de levar seu próprio bolo para o trabalho.
E tudo isso me traz de volta ao armário dos remédios.
Afasto para um lado a porta corrediça espelhada; meu rosto desaparece pela lateral, substituído pelas caixas em preto e branco de cremes vendidos mediante receita, com-primidos em embalagens de plástico duro transparente e vidros marrons tampados com fibra de algodão. No armá-rio tem Imodium, Canesten, Piriton, Benylin, Robitussin (antidiarreico, antimicótico, anti-histamínico, xarope an-titussígeno e antialérgico, expectorante) e mais uns trata-mentos holísticos de aparência suspeita: arnica, equinácea, erva-de-são-joão e umas folhas desidratadas de aloé.
Eles acreditam que tenho problemas afetivos. Acho que é por isso que não querem me sobrecarregar com os seus. O que não parecem entender é que os problemas deles já são meus. Posso herdar os canais lacrimais frágeis da ma-mãe. Quando ela anda na brisa, as lágrimas lhe saem pelo canto externo dos olhos e descem em direção ao lóbulo das orelhas.
Resolvi que a melhor maneira de fazer meus pais se abri- rem é lhes dar a impressão de que sou emocionalmente es- tável. Direi a eles que consultei um terapeuta e que ele ou ela disse que estou bem, em linhas gerais, só que me sinto isolado de meus pais e que eles deviam ser mais generosos com suas histórias.
Há uma clínica não muito longe da minha casa que con- tém uma variedade numerosa de terapeutas: fisio, psico e ocupacionais. Ponderei qual deles me daria menos proble-mas. Meu corpo é praticamente perfeito, por isso optei pelo Dr. Andrew Goddard, um fisioterapeuta com bacharelado e mestrado.
Quando telefonei, atendeu um secretário. Eu lhe disse que precisava marcar hora cedo, porque tinha de ir à escola. Ele respondeu que eu podia ficar com um horário na quin-ta-feira de manhã. Perguntou se eu já estivera na clínica. Eu disse que não. Perguntou se eu sabia onde era e respondi que sim, ficava perto dos balanços.
Fiquei admirado ao descobrir que existem agências de de- tetives nas Páginas Amarelas. Agências de detetives de ver-dade. Uma delas tem esse lema: “Você pode fugir, mas não conseguirá se esconder.” Dobrei o canto da página para fa-cilitar a consulta.
Manhã de quinta-feira. Em geral, deixo mamãe me acordar, mas hoje ajustei o despertador para as sete horas. Mesmo embaixo do meu edredom grosso, consigo ouvi-lo berran-do do outro lado do quarto. Escondi-o dentro do meu en-gradado de plástico para joysticks defeituosos, para ter que me levantar da cama, atravessar o quarto, arrancá-lo lá de dentro pelo fio e só então apertar o botão da soneca. Foi uma manobra tática feita pelo meu eu anterior. Ele sabe ser muito cruel.
Ao ouvir o despertador, ele me fez lembrar um alarme de carro que dispara toda vez que passa um veículo de trans-porte de cargas pesadas. Ele geme feito um bebê robótico.
O carro é do homem que mora no número 16 da rua abaixo da nossa, a Grovelands Terrace. Ele é pansexual. Os pansexuais se sentem sexualmente atraídos por tudo. Ani-mado ou inanimado, não faz diferença: luvas, alho, a Bíblia. Ele tem dois carros: um Volkswagen Polo para o cotidiano e um Lotus Elise amarelo para os dias melhores. Estaciona o Polo em frente à casa e o Lotus nos fundos, na minha rua. O Lotus é o único carro amarelo da minha rua. E é muito sensível.
Já vi o homem muitas vezes vir correndo pelo jardim dos fundos, abrir o portão e apontar as chaves para a rua. A ge-medeira para. Quando isso acontece tarde da noite, ele olha para cima, para ver quantas luzes se acenderam nas janelas das casas da rua. Verifica se há arranhões no carro, deslizan-do ternamente a manzorra pelo capô e pelo teto.
Uma noite, o carro chorou intermitentemente entre a meia-noite e as quatro da manhã. Eu tinha uma das provas de matemática da Sra. Griffiths no dia seguinte e fiquei com vontade de informar ao sujeito que, na nossa comunidade, esse comportamento era inaceitável. Assim, voltei para casa na hora do almoço, depois de me dar mal na prova, fui até a rua e vomitei no capô do Lotus. Foi principalmente tortinha recheada de mirtilo. À tarde caiu uma chuva furiosa e, na hora do chá, a lição tinha sido lavada pela água.
Quando desci para o café da manhã, papai me perguntou por que eu tinha levantado tão cedo.
— Tenho uma consulta com um terapeuta às oito e meia, o Dr. Goddard, bacharel em ciências — respondi. Disse-o como se essa assunção recém-descoberta de responsabilida-des não fosse grande coisa.
Papai estancou no meio do processo de fatiar uma bana- na em seu müsli. A casca da banana achava-se na palma da sua mão, para protegê-la do golpe descendente da colher. Ali estava um homem que entendia de senso de responsa-bilidade.
— Ah, certo. Meus parabéns, Oliver — disse ele, balan- Papai é fã dos preparativos; deixa seu müsli na geladeira desde a noite da véspera, para que o cereal possa absorver completamente o leite semidesnatado.
— É, não é nada demais. Só achei que eu gostaria de bater um papo sobre umas coisas — comentei, descontraído.
— Que bom, Oliver. Precisa de dinheiro?— Sim.
Ele sacou a carteira e me entregou uma nota de vinte e uma de dez. Sei quando estou gastando dinheiro do pa-pai, porque ele dobra a ponta das notas de vinte como se fosse uma dobra de lençol, para elas caberem na carteira sem chamarem a atenção. Os cegos também dobram suas cédulas.
— Oito e meia — disse ele, consultando o relógio. — Eu — É logo ali na Rua Walter. Vou a pé.
— Está tudo bem, eu quero levá-lo.
No carro, papai me tratou com gentileza.
— Estou muito impressionado — disse, checando o retro- visor lateral, ligando a seta para a direita e entrando na rua Walter — por você fazer isso, Oliver.
— Mas, sabe, se você quiser conversar sobre qualquer as- sunto, eu e a sua mãe já passamos por um bocado de coisas e talvez possamos ajudar.
— Que tipo de coisas?— Bom, sabe, não somos tão inocentes quanto você su- põe — disse ele, com uma olhadinha de soslaio que só podia significar sacanagem.
— Eu gostaria que a gente batesse um papo em alguma — Puxa, vai ser ótimo.
Sorri, porque queria que ele acreditasse que tínhamos uma relação de camaradagem. Ele sorriu por achar que era um bom pai.
Parou na porta da clínica e ficou me vendo atravessar o pátio da entrada. Dei-lhe um adeusinho. Seu rosto estava tenso, numa mescla de orgulho e tristeza.
A clínica não se parecia nem um pouco com um hospital. Fazia lembrar a casa da vovó, cheia de corrimões e tapetes. Na parede havia um cartaz de uma espinha dorsal, empina-da feito uma naja prestes a esguichar veneno. Segui as placas que indicavam a sala de espera.
Ninguém na recepção. Apoiei o polegar numa campainha pregada ao balcão. Ao lado dela estavam escritas as palavras “Aperte para obter ajuda”.
Fui apertando até ouvir passos no andar de cima.
Peguei um exemplar do Independent na estante de jornais e me sentei ao lado de um bebedouro Edensprings. Apesar de não estar com sede, servi um copo d’água, só para ver a água-viva translúcida borbulhar até a superfície.
Os assentos tinham um formato feito para corrigir a pos- tura. Empertiguei as costas. Fingi ler o jornal, como se esti-vesse no trajeto para o trabalho.
Uma voz me disse que eu devia ser o Sr. Tate. Levantei os olhos e vi o homem parado à minha frente, segurando uma prancheta. Tinha mãos grandes. Reconheci-o.
— Se não se importar em preencher esse formulário, podere- mos começar — disse ele, estendendo-me a prancheta. — Você mora no número 15, não é? É o filho da Jill? — perguntou.
Percebi que ele era o pansexual que morava em Grovelan- ds Terrace. Fiquei surpreso por deixarem pansexuais traba-lharem como recepcionistas.
Rechacei o impulso de escrever um endereço falso.
— Muito bem, ótimo. Queira me acompanhar.
Entramos numa sala com uma cama que parecia uma maca e um esqueleto de pé num canto. Não havia ninguém além de nós. O pansexual sentou-se na cadeira do médico.
— Desculpe, não sei se me apresentei. Sou o Dr. Goddard — disse ele, estendendo a mão —, mas, por favor, me chame de Andrew.
De perto, suas mãos eram ainda maiores. Bem, não é ver- dade — é uma simples questão de escala.
— E então, Oliver — disse ele, dando uma olhada em meu formulário. — Quais são as novidades? Respondi que eram as minhas costas. Que elas doíam.
— Certo, se não se importar em tirar a roupa. tudo, me- nos as calças. poderemos dar uma olhada em você.
Com “poderemos” ele queria dizer “poderei”.
Eu disse a mim mesmo para não me sentir sexualmente ameaçado. Eu não era de interesse especial; com a mesma facilidade ele poderia se interessar por uma impressora.
Tirei os sapatos e os jeans, mas fiquei de meias. Depois, tirei o suéter e a camiseta de uma vez só, para ganhar tempo.
— Muitas vezes, as dores nas costas têm a ver com o estilo de vida, em parte — disse ele, batendo em algumas teclas do teclado. — Você passa muito tempo sentado? — Fico sentado na escola. E à minha escrivaninha no Ele balançou a cabeça e se virou para a tela do compu- — Eu vejo todos os jardins dos fundos na sua rua — in- O homem estava lendo alguma coisa, espremendo os — Ahã — disse.
Continuou batendo na tecla da seta para baixo.
Deixei que se atualizasse com as informações. Ele parou e se virou para mim. Balançou a cabeça, piscou e apontou para minhas pernas: — Oliver, você é alto para a sua idade e tem fêmures lon- gos. Isso quer dizer que a maioria das cadeiras não lhe serve.
Descansei as mãos sobre as coxas.
— Você acaba arriando os ombros ou se reclinando de- Empertiguei-me na cadeira.
— Se quiser pular na cama para mim, vamos ver o que Por “pular” ele queria dizer “sentar-se”. Sentei-me na cama com as pernas penduradas num dos lados, balançando.
— Você entende de pansexuais? — perguntei, em guarda.
Ele parou.
— Não, acho que não. — E contornou a cama, colocan- do-se atrás de mim. — É uma pessoa com uma queda por panelas e panos? Era uma piada.
Enquanto falava, ele correu os dedos pelas minhas costas — Por que pergunta?— Você conhece o seu vizinho do lado, o homem do nú- — Você se refere ao Sr. Sheridan?— Ele é carniceiro. Carniceiro é o cara que abate cavalos.
O Dr. Goddard não disse nada. Friccionou minhas costas, — Importa-se em se deitar de barriga para baixo para mim, Oliver? Pode pôr o rosto ali — instruiu. Poderia ter dito “deitar de bruços”, economizando duas palavras. Apon-tou para um buraquinho, meio parecido com um assento de vaso sanitário, numa extremidade da cama.
— Aqui, Andrew? — perguntei.
Ele assentiu. Virei de bruços e enfiei o nariz no buraco.
— Agora vou abaixar a cama, Oliver.
A cama abaixou, ganhando vida por um breve momento. Perguntei a mim mesmo se ele teria mentido sobre não en-tender a palavra “pansexual”.
O Dr. Goddard massageou a área em torno da minha oi- — Conheço bem o Sr. Sheridan, Oliver — disse, deslocan- do as mãos para meu pescoço. — Ele é pintor e decorador.
Friccionou minhas costas aproximadamente na altura da — Andrew, ele tem olhos e macacão de assassino — re- Mamãe diz que, quando a gente quer gravar o nome de alguém, deve se certificar de chamá-la pelo nome ao menos duas vezes durante a conversa introdutória.
Eu só conseguia enxergar um pedacinho do tapete azul-claro. Pensei em cuspir nele. Ou em tentar vomitar.
O Dr. Goddard aumentou um pouco a pressão no meu — A família do número 13 é de zoro. — perdi o fôlego quando ele me massageou as costas. — Zoroastristas. O zo-roastrismo é uma religião pré-islâmica da antiga Pérsia.
Não consegui me impedir de soltar uns grunhidos. Torci para ele não achar que eu estava gostando daquilo.
— Hmmm, tenho quase certeza de que eles são muçul- manos, Oliver — disse o fisioterapeuta, pressionando meu pescoço com mais força. Se quisesse, eu poderia vomitar.
— Muito bem — fez ele. Um aparelho apitou, como uma televisão ao ser desligada. — Vou fazer uma ultrassonogra-fia das suas costas.
Eu não sabia o significado de “ultrassonografia”. Em con- dições normais, anotaria a palavra na mão, mas, nessa situa-ção, fui obrigado a morder a parte interna da bochecha à guisa de lembrete.
— Isso é frio — disse ele, e foi como se quebrasse ovos nas minhas costas. Não foi desagradável.
Pensei no que ele me dissera sobre a família do número 13 e o homem do número 15. Pensei em seu jeito de mexer nas minhas costas, no modelo de esqueleto e no fato de ele ter dito que eu tinha fêmures longos.
Ele espalhou o gel na minha coluna e nos meus ombros com o que parecia ser um desodorante roll-on. Ainda não preciso usar desodorante. O Chips diz que roll-on é coisa de viado.
— Eu vomitei no seu carro — informei. Ele parou de es- — O quê?Era muito difícil falar, eu estava com as bochechas es- — No capô. Mas não ficou, por causa da chuva.
— Você vomitou no meu carro? — perguntou ele. Aquilo — É, vomitei no seu carro. O amarelo. O alarme do seu carro tinha disparado a noite inteira e eu queria lhe dar uma lição.
Tive a sensação de que ia mesmo vomitar. Meu rosto co- meçou a ficar dormente. Houve outro som de bipe. Achei que ele havia desligado alguma coisa. Ouvi-o andar de um lado para outro. Eu estava muito vulnerável. De vez em quando, vislumbrava um de seus mocassins. Aí ele parou. Esperei que dissesse ou fizesse alguma coisa.
— Pode se levantar, Oliver. Já terminamos.
Depois disso, o médico foi muito gentil comigo. Disse-me que eu era realmente muito saudável e que minhas costas não estavam nada mal. Deu-me um suporte lombar grátis — uma almofada em forma de salame — porque, segundo disse, queria que fôssemos amigos dali em diante.
Escondi o suporte lombar embaixo da camisa ao abrir a porta da frente.
Mamãe estava à minha espera, sentada no segundo de- — Como foi?— Beleza. Estou relaxado à beça.
Ela havia secado parcialmente o cabelo. As pontas pare- ciam de um castanho mais escuro que as raízes.
— Ótimo. Você vai voltar lá?— Não, parece que eu só tinha um trauminha de infân- cia; não demorou muito para resolver. Ele disse que um dos meus grandes problemas era eu não me sentir suficiente-mente próximo dos meus pais. Disse que eles não comparti-lham muitas coisas comigo.
Mamãe ficou me olhando. Usava um agasalho roxo hor- — O que é isso embaixo do seu suéter? — perguntou.
Baixei os olhos para meu peito, estufado como um barril.
— É um travesseiro novo.
— O quê?— Pra eu poder dormir de noite. Andei tendo dificuldade para dormir. A culpa é quase toda sua.
— Posso vê-lo?— Não. Eu estava mentindo. É um rolo de revistas por- Ela espremeu os olhos para mim.
— Diga o que está embaixo do seu suéter, Olly.
É nessas horas que dou graças por ser adolescente.
Tiro proveito da postura atual dos meus pais a respeito dos palavrões: a de que a decisão é minha.
— Puta que pariu! — berrei, e passei ventando por ela, subindo três degraus de cada vez. Louvado seja Deus pelos fêmures compridos.
Corri para meu quarto, sentei à escrivaninha e comecei a Há nove planetas em nosso sistema solar, sendo Saturno o maior. As formas de vida em Saturno são silenciosas. Eles não precisam de boca, porque se comunicam usando o pensamento, não a falam.
— Quero ficar no meu quarto — pensa um jovem saturnino para A mãe o entende completamente. Compreende o que ele quer di- zer de um modo que os monossílabos falados na Terra jamais con-seguiriam reproduzir. Sabe que ele está com vontade de passar um tempo sozinho — não precisa perguntar se o filho está bem, nem se preocupar com ele, nem deixar folhetos espalhados pela casa.
Passei a língua na saliência deixada na parte interna da boche-cha. Depois, procurei a palavra “ultrassonografia” na enciclo-pédia.
A ultrassonografia usa ondas sonoras de alta frequência para estudar áreas do corpo difíceis de alcançar. Foi origi-nalmente desenvolvida na Segunda Guerra Mundial, para localizar objetos submersos: cargas de profundidade, sub-marinos, a Atlântida e coisas que tais.
A primeira coisa que furtei na vida foram três libras ester- linas e 45 pence que estavam no console da lareira, na festa de aniversário do Ian Grist. Gastei-os em cola Copydex.
A segunda coisa que roubei foi a Oxford Encyclopaedia do meu pai. Isso causou uma pequena discussão entre papai e mamãe. Ele disse: — Eu sempre a recoloco exatamente no mesmo lugar de- pois de usá-la, e, olhe!, ela não está lá.
No dia seguinte, ele saiu e comprou dois exemplares da enciclopédia, de capa dura, um preto e um azul-marinho.
— Muito bem, agora comprei um exemplar só para você Ouvi o baque do livro batendo na escrivaninha dela.
Meses depois, quando mamãe estava fora, numa confe- rência, deixei a velha enciclopédia do papai no corredor, do lado de fora do meu quarto. Queria que ele a encontrasse. O livro estava aberto nas páginas 112-113, que contêm o verbete “dissonância cognitiva”: A dissonância cognitiva é um mal-estar inicialmente descrito pelo psicólogo Leon Festinger em 1956, relacionada com sua hipótese da coerência cognitiva.
A dissonância cognitiva é um estado de oposição entre cognições.
A cognição, basicamente, é um pensamento, uma crença ou uma postura.
A teoria da dissonância cognitiva afirma que as cognições contra-ditórias funcionam como uma força propulsora que obriga a mente humana a adquirir ou inventar novas ideias ou crenças, ou a modi-ficar as crenças existentes, a fim de minimizar o grau de dissonância (conflito) entre as cognições.
Papai leu o verbete e, em seguida, sem tecer comentários, repôs o livro em silêncio na minha estante.
No meu último aniversário, ele me comprou uma edição de bolso do Collins English Dictionary. O livro só caberia num bolso que tivesse sido especialmente projetado para isso.
No Natal passado, do jeito que meu pai costuma fazer quando acha que topou com uma linha de presentes simples e agradáveis, ele me deu um Roget’s Thesaurus vermelho-san-gue, uma protuberância quadrada no meu pé de meia.
Mantenho meus livros de consulta à mão quando olho pelas janelas dos nossos vizinhos que moram mais abaixo na ladeira.
Eu moro no quarto do sótão de um imóvel que em parte pertence a meus pais, em parte ao banco.
Vivemos mais ou menos na metade de uma ladeira íngre- me, numa casa de três andares geminada a outras. O local é conhecido como Colina Aprazível. Os vitorianos construí-ram as ruas em forma de grade quadriculada, para todas as casas ficarem voltadas para a mesma direção, de frente para a baía. Meus pais me dizem que a vista do meu quarto é fan-tástica, mas não sou chegado a panoramas.
Swansea tem a forma de um anfiteatro. O prédio da pre- feitura parece alguém sentado na primeira fila, com um cha-péu horroroso em forma de torre de relógio.
Do seu quarto no primeiro andar, papai gosta de ver a balsa de Cork surgir por trás do farol Mumbles e gingar len-tamente baía adentro.
— Lá vem a Corky — diz ele, como quem apresenta o animador de um programa de prêmios na TV.
Gosto de olhar para as janelas e os jardins dos fundos das casas de Grovelands Terrace. Considero-me um excelente juiz do caráter.
A família do número 13 continua a ser zoroastrista.
A velhota feia do número 14 é triscedecofóbica. Tem O homem do número 15 continua a ser carniceiro.
E no número 16 fica o Andrew Goddard — excelente mé- dico pansexual e mentiroso compulsivo.
Domingo. Eu e papai estamos no depósito de lixo, que nada mais é do que um estacionamento cheio de caçambas, pren- sas e enormes contêineres. Céu cinza-concreto. Eu sentia cheiro de cerveja derramada, vinagre e terra.
Estava sopapeando garrafas de vinho por entre os arbus- tos densos. Aquilo era meio parecido com uma cova coletiva e todas as garrafas verdes eram judeus. Também havia gar-rafas marrons e transparentes, mas nem de longe na mes-ma quantidade. Com eficiência gestápica, tirei outra garrafa verde do engradado.
Todos os cadáveres seriam triturados, reciclados e usados — Oliver, nós temos uma coisa para falar com você — disse papai, despejando uma caixa de papelão cheia de lixo do jardim numa prensa verde-sapo.
Ao contrário do médico, quando papai diz “nós”, ele quer dizer “nós”, porque a mamãe é onipotente.
— Quem morreu? — perguntei, atirando uma garrafa de — Ninguém morreu.
— Vocês vão se divorciar?— Oliver.
— Mamãe tá grávida?— Não, nós.
— Eu sou filho adotivo.
— Oliver! Por favor, cague a boca!Nem acreditei que ele dissera isso. Ri de chorar. Papai fi- cou atarantado e rubro, segurando uma pilha de suplemen-tos do jornal de domingo. Continuei a rir, muito depois de ter deixado de ter graça.
Mas o que meu pai disse em seguida fez minha risada estancar. Nada poderia ter me preparado para aquilo: — Sua mãe e eu decidimos: precisamos tirar férias. Fize- mos reservas para irmos todos na Páscoa. À Itália.

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